segunda-feira, 30 de abril de 2012

A marca do absoluto

Eu queria saber de onde vem o ódio, de onde vem a intolerância.
O governo do relativismo é tão tolerante, tão bondosa... Ela dá voz aos afônicos...
Ela dá cor aos acromáticos, e brilho àqueles que não podem brilhar.

Tudo agora é em relação a uma referência. Tudo vale, tudo é bonito.

Epa... Tudo?

Sério, tudo?

Conheci umas pessoas... Elas eram únicas, diferente de todos os outros que ganharam o poder do relativo. Enquanto o mundo inteiro banqueteava-se com o banquete da liberdade, dos sorrisos abertos e dos tapinhas nas costas, aquela gente era esbofeteada na cara a cada palavra proferida. Eram difamados a cada dia em que se reuniam para viver em comunidade, eram caçoados a cada profissão do que fazem deles aquilo que são.

Carregavam um pequeno símbolo no peito. Símbolo este que era sinal de escárnio por aqueles que passavam a mão na cabeça de todo mundo, menos daquela gente perseguida. Mas não era tudo bonito, não era tudo que valia? Por que, para aquele grupo, nada vale, e nada é bonito? Por que todos encontram o perdão e a acolhida por parte dos governantes do relativo, menos aquele grupo?

Não, nada é bonito. Enquanto o mundo inteiro torna-se livre, a liberdade é negada àquela gente. O relativo torna-se finalmente absoluto, mas um absoluto perverso: (quase) tudo é relativo, mas o ódio àquele grupo é absoluto.

Que coisa feia! Que tristeza! Talvez se a justiça, a beleza e a retidão inundassem o mundo, não houvesse mais relativos exaltados e absolutos relegados ao lixo...

domingo, 29 de abril de 2012

Corra Thiago, Corra!


Naquele sábado, não levantei de pronto com o despertador, como é de costume. Titubeei na cama por alguns minutos antes de me colocar de pé, silenciosamente, para não acordar meu colega de quarto. Fui à cozinha, tomei meu remédio e fui na varanda. As costas doíam, o tempo nublado desanimava. Deitei no murinho afim de manter as costas reta numa superfície dura, e lá fiquei por talvez um quarto de hora, meditando. Eu não queria sair, sabia que naquele dia seria o tão temido treino longo, os 16km. Iniciante que era nas corridas, era a segunda vez que o faria, e tinha medo. Fui para dentro, escovei os dentes, tomei meu café - mas um café frugal, sem os ovos, como costuma ser -, vesti a roupa de corrida, peguei o celular e o fone de ouvido, uma garrafinha com refresco de morango e sai. Parei antes do portão e fiz um alongamento, bem demorado, como raramente faço. Coloquei uma música, executei o aplicativo do celular que uso para monitorar minhas corridas e parti. Agora já não tinha para onde correr, a não ser para frente, e cumprir o treino longo do dia.

A corrida havia começado, os primeiros quilômetros já se haviam passado e me sentia bem. Estava na minha velocidade tranquila, cerca de 9km/h, um pouco abaixo do que costumam correr, mas não tenho muita ambição. A meta é no dia da prova correr a 10,5km/h, mas ainda tinha 2 meses para melhorar isso. O objetivo do treino de hoje era o meu corpo se acostumar ao longo percurso.

Embora estivesse tudo bem, manhã nublada bonita, temperatura agradável, pessoas correndo pela orla, eu começava a me cansar e pensar em desistir, isso antes dos 5km. Eu havia dormido apenas 5h naquela noite, e as pernas estavam tensas pois havia corrido 7km no dia anterior. Pensei em desistir. Vozes dentro de mim me desmotivavam, a garrafa de refresco que eu havia trago se tornava um fardo, e eu me achava incapaz. Foi aí que, na curva dos 5km veio no sentido contrário um senhor, com certeza com mais de 60 anos, correndo, a camisa empapada de suor. Era a motivação que eu precisava. Agora já havia passado da praia de Icaraí e tinha que enfrentar as curvas e subidas para chegar na praia de São Francisco. No fone de ouvido começou a tocar uma música triste que me remeteu a lembranças do passado, então algumas lágrimas rolaram dos olhos, se mesclando ao suor. Meu psicológico estava uma pilha, e era ele meu oponente naquele momento, eu queria parar, queria descansar, nem que fosse um minuto, queria andar parte do percurso, tentava fazer acordo comigo mesmo de terminar a ida e voltar de ônibus ou caminhando, era o acordo do demônio. Sabia que se parasse por um segundo só, minhas pernas iriam latejar, e eu não conseguiria voltar a correr. Eu não podia parar. Este foi o primeiro grande embate, durou 2km, e eu venci.

Cheguei na praia de São Francisco, vi mais corredores, e pessoalmente gostava mais daquela parte do percurso. Já avistava a estação de barcas de Charitas, o ponto de retorno, e esboçava um sorriso. Corria com mais ânimo, mais alegria, mas o cansaço continuava. Cheguei no ponto de retorno, dei a meia-volta e retornei. Eu queria fazer split negativo, ou seja, correr a volta mais rápido que a ida, mas os pés ainda não permitiam. A volta foi mais tranquila, eu estava extremamente cansado e experimentava uma paz intensa. O cansaço era tamanho que até as vozes que sussurravam dentro de mim para me desestimular haviam se calado. Voltei as praias de Charitas e São Francisco, e quando estava descendo a ladeira, chegando na praia de Icaraí, vizualisando o MAC, começou a tocar "The World is Mine", e esta música vibrante, associada com o fato de estar próximo do final, me deram o gás para incrementar as passadas e finalmente começar meu split negativo. Eu me sentia feliz, e assim foi o final da corrida. Algumas lágrimas rolaram, mas de alegria. Eu havia travado uma luta contra mim e havia vencido, havia me superado. Suor e lágrimas, e um sentimento de vitória. Fechei o percurso: 16km em 01:39:17, bem melhor que os 01:52:21 que havia feito 25 dias atrás. Todo suor tinha valido a pena, a guerra não terminou ainda, mas venci mais uma batalha.

Sem nenhum sentido

Ouço os acordes da velha canção
Ela faz-me recordar dos tempos em que eras uma linda flor a desabrochar...

E eu a te amar...

Todas essas lembranças, fortes como uma bala de canhão
Que me leva ao chão, fraco, a meio passo de me desesperar

E eu a, em ti, pensar...

Inútil! Inútil! O ódio me sobe à cabeça!
Perco-me no vazio do não-existir, no sincero vácuo anti-pragmático!
Aonde hei de descansar, sem que eu pereça?
Quando hei de me afastar de ti, com o rigor de um matemático?

E eu a te plantar em mim

Como!? Como!? É esse, então, o veneno dos românticos?
Que libera toxinas em meu organismo num piscar de sinapse?
Numa memória eletromagneticamente ativada em domínios psico-quânticos?
Passada em minha cabeça como um louco filme sem sinopse?

E eu a perguntar coisas estúpidas sobre ti...

E a cada vez que pergunto sobre ti, eu mato a mim mesmo. A cada olhar das palavras que espalhas ao vento, acende-se no meu peito uma chama invisível de um sentimento que somente um estóico poderia compreender.

Ó, mulher, que parasita minha alma e rejeita minha matéria! A tua existência é veneno, o teu "não" é um tóxico, o teu saber é ignorância.

E teu destino é sofrer, porque o veneno também é veneno contra si mesmo.

sábado, 28 de abril de 2012

Lembranças


Moça, sente-se por um instante.
Não abaixe o rosto, olhe nos meus olhos.
Me diga, o que está vendo?
Tristeza, isso mesmo.
É só isso que me restou,
Depois que perdi você.
Lembra de nós dois? Não, não deve lembrar.
Você está feliz agora, talvez
Mais do que outrora.
Não tem motivos para olhar pra trás.
Só queria repetir mais uma vez:
Arrependo-me de tudo.
E se possível fosse,
Daria minha vida,
Só para ter,
Um dia que fosse,
Novamente,
Com você.

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Gunther, o guerreiro da razão, parte 4: A revoada

"Velha Antioquia, que tanta história tem no que de ti remanesceu! Um velho viajante um dia veio me contar, quando me entregou este livro, das velhas histórias. De como o Velho Pescador liderou os homens de boa vontade, outrora! Ah, Antioquia, quisera eu poder proteger-te dos infiéis que arrasaram teus fundamentos, que te roubaram a consciência, que te tomaram de assalto. Mas não posso ao tempo voltar, por isso por ti passo em lamentação, seguindo rumo ao meu destino final..."

Gunther pronunciava mentalmente estas palavras, enquanto andava pela antiga cidade de Antioquia. Lembrava das histórias em que um velho homem (supostamente responsável pela sua mudança) lhe contou. Algumas lágrimas rolavam pelo seu rosto, até que ele teve uma idéia: tomou duas hastes de madeira, formando uma cruz, e fincou-a no chão. Em seguida, escreveu no chão com a espada, em frente à cruz, a inscrição "ICHTHYS", e ajoelhou-se, deiaxando a cabeça inclinada para baixo.

Mal terminou de fazê-lo, muitos pombos cercaram nosso herói. Eram, em sua maioria, negras, e arrulhavam forte. Gunther asustou-se e tentou assustá-las, mas elas não se moviam. Em seguida, um pombo branco saiu do meio dos negros e pousou em cima da cruz. E tendo-o feito, todos os outros pombos pararam de arrulhar. Gunther assombrou-se, tomou um pedaço de pele de cordeiro e escreveu:


"Gloria ad Spiritus Sancti"

E fincou a inscrição na cruz.  A pomba branca pousou na cabeça de Gunther e apontou o caminho que Gunther haveria de seguir. Consciente da direção, Gunther pôs-se a caminhar nela e a pomba branca voou, junto com as pombas negras. Gunther agora pressentia que estava perto do seu destino final...

quinta-feira, 26 de abril de 2012

Gemidos no Celular



Começamos a conversar,
Então sua mão desceu até lá.
Logo ouvi alguns gemidos,
E me pus a uns versos recitar:

"Como tu gemes gostoso,
 Branquinha.
 Fala meu nome baixinho, putinha.

 Diz que me quer aí dentro,
 Gatinha,
 Geme de novo gostoso, vadia."

Ela respondeu, zombeteira,
Sem muita pena de mim,
Com a sensualidade que lhe vem,
Falou assim:
"Te darei hipoteticamente."


quarta-feira, 25 de abril de 2012

A Latência de nós

Um dia fomos um, enquanto durou o momento
Sabemos bem que não havia maior perfeição
Então as circunstâncias trouxeram o desalento
Quando me levaram para longe do seu coração

Uma lágrima solitária desceu pelo seu rosto
Enquanto minha alma era um mar salgado
A derrubar barreiras eu estava disposto
Para não sair do aconchego do teu lado

E quem dirá que aquilo não foi verdadeiro?
Quem dirá que o que tínhamos não desceu do céu?
Que vil miserável dirá que tudo acabou?

Linda, nosso amor não foi traiçoeiro!
Ele vive, ainda que coberto por opaco véu
Esperando a liberdade que o tempo velou

terça-feira, 24 de abril de 2012

Para ser sincero, sinto saudades.



Nem todo erro vem para o bem;
Este último erro me fez te perder.
Perguntei por ti e me disseram: "Ela não vem".
Nesta guerra já não me interessa vencer.

Então ela me liga e canta uma canção,
Dizendo que jamais pretende voltar.
Que a ferida que causei em seu coração,
É algo que jamais irá cicatrizar.

Digo a ela com sinceridade,
Que se por alguém eu hoje mudaria,
Somente ela esta pessoa seria.

Ela desliga o telefone,
Diz que depois ligará.
Será que devo acreditar?

O tempo passa, nenhum sinal dela.
Chego alguns dias na janela,
E choro sua falta,
Sinto saudades dela.

Até que um dia, ouço uma buzina lá fora,
Corro para ver, um carro preto, vidro fumê.
Lá de dentro sai ela, sorridente, me abraça ternamente.
No horizonte uma nova aurora.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

À frente da Legião, vem Jorge!

À frente da legião vem Jorge, e ele é um bom soldado
Ele nunca matou dragão algum
Apenas defendeu a fé de Cristo sem medo de ser condenado
Ele, Jorge mártir, não é Ogum

Com sua lança, buscou proteger-se da perseguição
E não ousou negar o Nazareno mesmo com a ameaça da morte
Torturado foi, mas não caiu em apostasia ou na rejeição
Em Cristo seu martírio foi sinal de boa sorte

Jorge, rogai por nós, para que sejamos dignos da promessa do Teu Mestre
Faz que todos te conheçam pela cristandade de teu coração
Da Capadócia atira tua lança nas entranhas do Demônio

Cavalga com teu cavalo romano pela relva campestre
Fincando cruzes, para nossa salvação
Seja o teu martírio um divino patrimônio.


domingo, 22 de abril de 2012

Salve Jorge!



Grande Santo Guerreiro,
Na Capadócia és o primeiro,
No sincretismo responde,
Como Ogum, o ferreiro.

Salve Jorge, me abençôa ô Santo,
Com sua armadura poderosa,
Dádiva de Deus, és teu manto!
Permita-me Jorge esta glória!

Tua lança Santíssimo,
Permita-me manusear,
Para que os dragões da vida eu possa matar!

Me dê sua força Jorge!
Sou da tua companhia, nobre cavaleiro;
Mato em teu nome, Salve Guerreiro!

Insegurança indômita

Um dia me fizestes chorar como nunca imaginei
Tu sabes o que é acordar e ir dormir com o coração apertado?
Ao saber de tudo sem que tu soubesses que o sei
Vi-me só, abandonado e totalmente desolado

E agora eu vejo que nada mudou, eu sinto muito
Tu, com tua inocência dissimulada quase me enganastes
Como crer que tudo será como aquela noite, naquele minuto
Em que eu pensei que me amavas como nunca a ninguém amastes?

Eu soube, soube de tudo novamente, um nome me falou
Pegarei do livro da minha vida a página em que estás, e a arrancarei
Enchendo-a de tabaco, fumá-te-ei e cuspirei a tua fumaça

E depois jogarei a tua bituca fora, como a mim tua mão um dia jogou
E aí tudo estará terminado. Nenhum recurso meu, por ti gastarei
Pereça na aliança que te mantém presa sob ameaça

sábado, 21 de abril de 2012

Beijas na boca?



Eram 4h da manhã quando chegamos em Sodoma,
As moças, cansadas, seduziam os transeuntes;
Meu companheiro avistou sua Madona,
E eu decidi procurar amiúdes.

A Madona naquele dia ficou de frescura,
Decidiu então subir com uma loira monumental.
Em minha vã procura fiquei na secura,
Até que uma coroa na casa dos 50 fez subir o moral.

Perguntei a ela: "Beijas na boca?"
Ela sorriu e respondeu sem rebeldia:
"Só se for boa a companhia."

Inquiri quanto custaria tal alegria,
Ela respondeu: "Uma onça pintada."
E naquela noite, rolou uma "pentada".


sexta-feira, 20 de abril de 2012

Darquimeu


Darquimeu, filho meu: Seja benigno comigo!
E a partir de mim, seja contigo também
Por que escolhes o mau como teu guia
Se teu coração está inundado no bem?

Foge desta incoerência, e segura a minha mão!

Tu és demasiado bom para servir fielmente ao mal
Tu te envenenas a ti mesmo ao fugir da tua natureza
Enxerga a virtude que pode te transformar em luz e sal
Afasta as trevas que te retiram a beleza

Cumpre a tua tarefa e foge das máscaras que não te simbolizam!

Filho meu, Darquimeu, dá-me o teu amor
Ao invés de entregá-lo cegamente ao meu inimigo
Por que me dás as costas sendo este mau ator
E não vem a mim, de braços abertos, como filho e amigo?

Bota os teus pés no reto caminho e contempla o real

Mas enquanto não vens, cravo em teu peito um prego
E te desorientarei tal qual um órfão novilho
Fecho-te os olhos para que sejas um homem cego
Até que segures nas mãos do meu amado Filho.

quinta-feira, 19 de abril de 2012

Queridos amigos



Queridos amigos:

A vida...
Olho em minha volta.
Um espelho na parede,
Uma fotografia no chão.
Preto e branco.
Pessoas em minha volta,
Máscaras...
Uma adorna minha face.
Um sorriso, uma lágrima,
Emaranhados.
Em meu bolso um documento:
RG.
Não tem foto, nem nome;
Tem uma lembrança, uma sombra.
Tento alcançar o horizonte,
Mas está escuro demais.
Minha visão está turva.
Quem é você?
Alguém te ama?
Você é capaz de amar?
E sem saber responder,
Ele se retira...
Para onde? Não sei.
Até quando? Tão pouco...
Para trás deixa um bilhete:
Adeus.

quarta-feira, 18 de abril de 2012

A quem chamarás

A tua cara fechada de arrogância me consome
À medida que rio impiedosamente da tua miséria
Ridículo, julgas-te acima da fartura e da fome
Quando não és mais que uma caveira funérea.

Carne, cartilagem, notocorda, o ser primordial
Mas de onde herdou-se o primor?
Do nada? Do vazio da tua mente anti-cerebral?
Só se for, já que onde não há cérebro, não há temor.


Diz-me onde está a tua matéria quando tu recebes o golpe entrópico final!
Diz-me onde se encontra a tua prepotência e profanidade agora!
Tua insignificância é o lugar onde, para sempre, tu ficarás!

Põe o azeite na tua lâmpada, e ilumina a tua treva descomunal!
Ou continuarás com tua blasfêmia nesta hora?
Tua humanidade só voltará quando descobrires a quem chamarás.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Nu Canteiro de Obras


Nuya Panaka caminhava pelas ruas de São Paulo, próximo à Liberdade, apenas para espairecer. Estava entediada, a faculdade estava em greve, e não havia muito a fazer em casa. Sentia tesão, sentia tédio, sentia raiva, sentia amor. Aquele turbilhão de sentimentos explodiam em si, e convergiam para um estado latente de desespero. Nuya adorava caminhar, e naquele dia nublado, com o céu cinzento, aquela atividade proporcionava a ela paz de espírito.

Nuya caminhava pela calçada do canteiro de obras abandonado da velha fábrica têxtil, que seria demolida para construção de um moderno shopping. A obra havia sido embargada, talvez por uma propina que não tenha chegado nas mãos certas, de algum fiscal qualquer. A obra estava abandonado haviam 8 anos, e nesta altura já havia se entrelaçado ao meio, passando a fazer parte, naturalmente, da paisagem local. Tapumes metálicos contornavam a obra, muito pixados, em algumas partes artisticamente, em outras vandalisticamente. Em certa altura havia uma abertura na junção entre as duas placas de tapumes, com tamanho suficiente para passar uma pessoa. Aquela abertura era novidade, Nuya estava acostumada a tomar aquele caminho e nunca havia visto aquilo. Curiosa, por natureza, ousou olhar o interior, e num suspiro...

TUM!

Uma paulada forte havia sido dada em sua cabeça, sem tempo de reagir, como num suspiro. Nuya caiu no chão, entregue, sem sentidos por alguns segundos. Quando acordou estava nos braços de um homem negro, da sua altura, de cabelo raspado e barba por fazer. O homem beijava e chupava seu pescoço, causando dor e prazer, repulsa e tesão. Nuya tentava lutar, mas era frágil, e nos braços daquele homem forte, completamente indefesa. Ele a arrastou para dentro do prédio semi-construído, Nuya gritava, e ele abafava os gritos com sua mão. Chegando lá dentro tomou de um pedaço de arame farpado e amarrou as mãos dela para trás, e a calou amarrando um trapo em sua boca, arrancado de suas próprias vestes. Do extremos da parede puxou dois fios de arame farpado que já estavam ali presos para este fim, amarrando suas pernas e deixando-as arreganhadas. Nuya estava entregue àquele homem, que já babava de tanto tesão e prazer. Ela de relance olhou para a calça daquele homem e notou o volume que já não mais cabia ali. O homem com suas mãos rudes excitou Nuya num ponto onde ela não conseguia resistir, fazendo jorrar de seu sexo aquele saboroso mel, quente e doce. Avançou com a boca e sorveu até a última gota, como um bicho faminto. Nuya gemeu, e aquele som ecoou pelo recinto, dando mais prazer ao malévolo. Ele estava no ápice, não conseguiria mais se conter. Tirou a calça e seu membro se libertou. Nuya olhava vidrada, num misto de dor e desejo. Ele foi para cima da pequena e a penetrou com força e vontade. Ela gritou no começo, mas em seguida gemeu de prazer. A dor causada pelo arame farpado lacerando sua carne, o prazer gerado por aquele membro que a penetrava sem rodeios, e a sombria felicidade de se ver tão desejada por aquele homem...ela não aguentou, gozou freneticamente, sem conter os gemidos. O homem gritou "Ah minha branquinha...", e tirou rápido o membro, dirigindo-o para seu rosto. Jorrou o líquido da vida na face de sua cativa, dando a ela mais prazer. Ela recebeu de bom grado aquele líquido quente e viscoso, e tentava alcançar com a língua o que escorria do rosto. O homem deu uma gargalhada alta, colocou a calça e saiu, deixando Nuya amarrada. Voltou vestido com terno branco e um chapéu, fumando cigarro. Trazia dois cães enormes, raivosos e famintos. Soltou-os dizendo: O banquete está servido! E saiu, gargalhando como um demônio.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Julieta em chamas


Desde os muros da cidade eu vinha correndo depressa
Já não podia mais esperar para ver a minha princesa
O ourives e o alfaiate entenderam minha pressa
Fui atrás da minha dama como o leão corre atrás da presa

Os sinos tocavam na igreja, e a procissão dobrava a esquina
Para meu espanto, a partir dali todos fitavam-me com pesar
Uns homens corriam a minha frente, como se fossem até minha menina
E uma espessa fumaça, cheirando à desgraça, perturbava-me o respirar

Vi uma luz intensa, e senti um calor que irradiava-se bruto e violento
Era a casa de minha vida, que ardia em chamas impiedosas
Esqueci-me de minha própria vida e quis ali entrar, sendo interrompido meu intento
Pelas mãos de um douto que dizia: "Acabou! vai, e compra uma coroa de rosas"

E vi outra alma caridosa, que ali entrara para tentar a minha querida salvar
Saiu carregando um corpo negro, dilacerado pelo fogo, consumido até o fim
Uma lágrima caiu de meu rosto, e um segundo depois pôs-se a evaporar
Entrei, desvairado, no fogo, querendo todas as labaredas queimando em mim

domingo, 15 de abril de 2012

A Flor de Liz




Dizem que os opostos se atraem, balela.
Em nosso caso, a semelhança contribuiu,
A curiosidade me levou a ela,
E ela, sem pestanejar, retribuiu.

Ela me apresentou um belo jardim,
Nele, conheci a flor de liz,
E meu canteiro, que só conhecia uma certa jasmim,
Ficou encantado, agora poderia ser feliz.

No entanto, algo inesperado aconteceu:
Como de praxe, o príncipe virou plebeu.
E após um acontecimento, a flor de liz me esqueceu.

Tentei gritar, ela não quis escutar.
Se assustou com nossas divergências, correu para seu lar,
E agora estou aqui, sem chão, sem mar, sem ar.

Gunther, o guerreiro da razão, parte 3: O menino pobre de Bizâncio

Após andar entre montanhas e florestas, Gunther caminhava, mais alegre do que nunca, em busca do seu ponto final. Chegando num estreito, negociou com um marinheiro a sua travessia, oferecendo duas moedas de ouro que achara no meio da floresta. Não era muito seguro andar por entre as árvores, e nem era raro que houvesse assaltos e roubos. Possivelmente, essas duas moedas foram involuntariamente esquecidas pelos meliantes, que deixaram-nas cair na hora tão "apavorante" do ato ilícito.

Era ela, a velha Bizâncio dos Otomanos. A casa de Sofia lhe acenava, mas ali não era o ponto final do nosso aventureiro nórdico. Ele passava pela cidade, de modo que o caminho que tomava daria na belíssima jóia do Oriente, a bela Damasco da Síria. Entretanto, neste Caminho Gunther viu coisas terríveis.

Viu os otomanos  perseguirem uma moça pelo simples fato de ela usar no pescoço um ornamento em que duas pequenas hastes eram ortogonalmente transpostas. Imediatamente desembainhou a espada e foi ter com os vis agressores. Matou dois que estavam na iminência de tirar a vida da pobre jovem, e lhe facilitou a fuga. A jovem lhe sorriu e disse umas palavras que, lamentavelmente, não puderam ser compreendidas por Gunther, embora tivessem provocado também um sorriso na boca do nosso amigo guerreiro, que infelizmente teve de interromper o momento de ternura para escapar das mãos assassinas dos otomanos.

Tendo provocado a ira dos inimigos, Gunther, vendo-se em ampla desvantagem numérica, correu. Atravessou boa parte da cidade tendo seus contendores atrás dele,  a não muitos metros de distância. Até que, passando por um bairro pacífico, foi puxado para dentro de uma casa por uma mão misteriosa. Virando-se disposto a decepar a pessoa que o havia puxado, interrompeu a trajetória na hora quando percebeu que se tratava de um menino. Um menino de olhar extremamente imponente e pacífico ao mesmo tempo. Surpreendentemente, o menino falava o idioma de Gunther, e disse-lhes as seguintes palavras:

-Decerto és do norte. Aprendi teu idioma com um mercador que por aqui passou, há muito tempo. Vem, esconde-te aqui, os soldados irão embora e tu depois poderás seguir tua viagem. Mas diga-me: tens aí algo de comer? tenho fome, e tudo que tenho é este vasinho com água. Que me dizes? repartes comigo tua comida, e eu reparto contigo a minha água!

Com um sorriso, Gunther tirou de uma "trouxinha" feita de pano metade de um peixinho assado que economizara da noite passada. Deu ao menino, indicando com as mãos que não queria comer daquele peixe, que o jovenzinho poderia comê-lo todo. O jovem, por sua vez, disse:

-Homem de bom coração! Agora entendo porque protegestes minha amiga não muito longe daqui. Vejo que és diferente do resto do teu povo, o livro que carregas contigo é outro sinal claro. Toma, bebe desta água e vai! Os soldados já foram embora.

Gunther intrigou-se um pouco sobre como aquele menino poderia saber de quando ajudou a pobre moça a fugir, mas mesmo assim bebeu a água, e percebeu que em sua boca sentia-se um sabor, um sabor de uva. Espantou-se e lembrou-se de seu livro, de um trecho que tinha alguma ligação com o que acabara de ocorrer. Gunther tomou mais um pedaço de pele de carneiro, sua pena com a ponta embebida em tinta, e escreveu:

Gloria ad filium!

No mesmo instante em que mostrou a mensagem ao menino, o menino tocou-lhe o coração com a mão e saiu correndo daquela casa. Gunther novamente achava-se extasiado com este novo acontecimento inusitado. E cada vez que pensava no anterior, e neste, crescia sua força de ir até o destino final. Percebeu então, que o cantil de água dado pelo menino estava em suas mãos. Foi beber um pouco mais daquele vinho, mas quando percebeu, viu que era água, como era de ser da primeira vez. Não se importou e bebeu toda a água, e saiu caminhando seguro por Bizâncio, sem que ninguém ousasse levantar um só dedo contra ele. Voltava o nosso amigo nórdico à sua jornada, que parecia estar blindada a todo tipo de maldade ou iniquidade...





sábado, 14 de abril de 2012

Eu reparei, no seu olhar...



Me recebeu com um abraço forte,
Retribui com um cafuné
Seu perfume, seu sorriso, seu toque...
Para me beijar, ficou na ponta do pé.

Seu gargalhar me contagiava,
E as horas voaram como borboletas!
E enquanto sua história ela contava,
Bem passada serviam a chuleta.

Ouvi atentamente cada palavra,
Exerci meu hobby, a psicologia,
E tracei seu perfil, sua dicotomia.

Ela parou um momento, ficou a pensar;
A envolvi com meus braços, ela retribuiu com prazeria,
E riu inocentemente com alegria.

sexta-feira, 13 de abril de 2012

Onde é que tu estás? (Mutatis Mutandis em si)

Onde é que tu estás?

Quando eu desperto e não consigo enchergar-te ao meu lado?
Quando em vão desenterro alegorias e símbolos para te explicar a mim mesmo?
Quando em meu próprio altar sacrifico sinapses, desejando tua volta?
Quando eu percebo que não tenho teu afago, nem posso sentir tua pele com o meu toque?

Onde é que tu estás?

Quando me perguntam sobre o momento em que eu vou te encontrar?
Quando me indagam sobre quando contigo irei casar?
Quando eu fantasio estar no lugar daquele que contigo está?
Quando eu sonho contigo e com o paraíso, mas nem um, nem outro está onde deveria estar?

Eis uma questão delicadíssima. Eu estendi minha mão para ti, Lia, mas tu não a seguraste. Quantas perguntas quiméricas e quantos devaneios malignos tomaram conta de mim quando eu atribuí a ti qualidades virtuais, que eu não sabia se existiam! Mas isto tudo é porque eu não sei mais quem tu és. Eu não sei mais aonde tu estás. Os séculos deram-te outra forma. E eu passei tanto tempo a te imaginar. Passei tanto tempo desenvolvendo uma teoria de ti. Tornei-me o maior e mais proeminente teórico de ti, mas quando fui praticar-te a ti, percebi que és pura potência, sem ato algum. E assim, talvez seja possível que tu não tenhas mudado de forma meramente, como um raro acidente: talvez tu seja a própria mudança, a antropomorfização cabal do mutável: mutatis mutandis em si.

Portanto, como posso eu ter algo contigo, amada Lia, a quem devotei anos de minha vida sem receber de volta um único suspiro? Esconjurado está aquele que tomar esta pergunta como um lamento: não se lamenta por algo que é eterna mudança, pois se assim eu procedo, o lamento se torna inútil e sem razão de ser à medida em que aquilo que provocou o lamento já não existe mais, tornando até mesmo a lembrança daquele não-mais-existente ser algo completamente ilógico. É como se eu lamentasse a morte do hipopótamo cinza de listras cor de laranja.

Ah, Lia... Deve ser ruim para ti perceber que tu, Mutatis Mutandis em si, é incapaz de admirar a rocha firme do ato. Quando consegues fazê-lo, já não és mais aquela Lia, e sim outra Lia, que contempla e logo se aniquila. E é aí que, percebendo que és um camaleãozinho difícil de se enxergar, respondo a minha pergunta inicial. "Onde é que tu estás?" Em nenhum lugar, já que és potência pura, e onde estás agora, em um microsegundo depois já é lugar de um outro ser.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

Telefonema



Ontem estive cara a cara com minha morte.
Quis ligar para alguém e dar o último adeus;
Não sei se foi azar ou foi sorte:
A pessoa não me atendeu.

Tanto amor quando em ódio convertido,
É capaz de cavar um imenso abismo.
Somente para punir o culpado libertino,
O traído se lança numa onda de sadismo.

Agora me pergunto: será que vale a pena?
O certo da vida é que o amor não dura,
Então por que viver em monogâmica ditadura?

Ouça meu amor, preste atenção.
Se hoje por acaso te estendo a mão,
É porque te quero bem, não seu coração.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Gunther, o guerreiro da razão, parte 2: O velho ancião

Já havia dias que Gunther saíra de Steinborn. Os seus, que permaneceram no antigo vilarejo, indagavam-se a cada dia onde estaria aquele guerreiro que, silencioso, vagava rumo a um lugar que só ele sabia onde era. Ou talvez nem ele...


Raiou a noite na região transilvana. Gunther, no silêncio mergulhado, matou um porco selvagem e, assou-o numa fogueira que, com muito esmero, preparou. Ao cortar um farto pedaço do suíno e fez uma prece mentalmente, fechando os olhos, num costume que era estranho ao seu povo. Qualquer um haveria de achar extremamente esquisito aquela cena, um viking com comportamento religioso diferente daquele que Thor ou Odin exigia.


De repente, ouviu Gunther o som de galhos partindo-se, como se alguém neles pisasse. Colocou a carne que comia em cima de uma folha, e empunhou a sua espada. Daquela terra escura pela ausência do sol, saiu um homem, velho, vestido com roupas surradas, de barba e cabelo grandes e brancos. Acenou com as mãos, demonstrando inocência e boas intenções. O viking embainhou a espada, e acenou ao velho, mostrando o porco assado e o oferecendo.


Mais uma vez Gunther desafiara toda a lógica. Um viking de verdade teria assassinado o velho sem piedade. Mas a piedade tomou conta dele de tal forma, que não só poupou o ancião da morte, como ofereceu-lhe comida. O velho, então, disse a ele, na sua própria língua germânica:


- Tu, que fazes na floresta? És peregrino?


Gunther acenou com a cabeça que sim.


-"Não falas? Perdeste a língua?", completou o velho.


Gunther acenou com a cabeça que não, e com gestos e gravuras desenhadas no chão com um graveto, deu a entender que estava proibido de falar até chegar ao seu destino.


-"És um homem de fé, certamente. Vamos comer, porque a noite avança e não podemos dormir de barriga vazia", disse o velho ancião, que tomou a carne, deu graças num idioma distinto do que usava para falar com Gunther, e neste exato momento, algo de extremamente sagrado emanou do ancião. Na hora, Gunther caiu com o rosto por terra, abriu seu frasco de tinta, tomou a pena e escreveu num pedaço de pele de carneiro:


"Gloria ad Pater!"

Quando iria mostrar ao ancião, ele desapareceu. Gunther correu para os lados, buscando rastros dele, e nada. Nenhuma pegada, nenhum sinal. Apenas o pedaço de carne por ele abençoado estava ali. Gunther tomou-o e comeu. Abrindo depois o seu livro, leu ali algo que o fez guardar aquele estranho acontecimento em seu coração. Deitou sua cabeça e, fortalecido pela refeição abençoada, esperou o raiar do dia para seguir na sua peregrinação.








terça-feira, 10 de abril de 2012

Infértil


Venha cá meu amor...
É o que suplica meu peito.
Tento refrear a dor,
Ser feliz já não é um direito.

Meu jardim, antes florido,
Agora já não tem nenhuma flor.
O meu peito, aperta sofrido,
Sente falta da jasmim, do seu odor.

Talvez seja o tempo,
De seguir o conselho, que a ela um dia dei:
Apague tudo. Esqueça. Viva uma nova lei.

De tempos em tempos, é preciso mudar.
Formatar a máquina, redescobrir o "amar";
Só se pode ser feliz se você tentar.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Gunther, o guerreiro da razão, parte 1: O início

Saindo do velho vilarejo de Steinborn, um guerreiro incomum partia em peregrinação. Os seus caçoavam, o humilhavam, porque de uns tempos para cá, ele havia mudado. Gunther era um guerreiro obstinado, que havia conquistado muitas terras em além-mar para o rei Rothgard, fora general de várias hordas, os vikings batiam no peito e gritavam palavras de ordem só de ouvir o nome dele. Mas ele havia mudado.

Vestia sua armadura, mas seu capacete havia sido jogado fora. Tomou uma capa para proteger-se do frio (era inverno e nevava), e a capa cobria também a sua cabeça. Levava uma espada embainhada, cuja bainha estava pendurada em suas costas, e na sua mão esquerda, um velho livro. Um volume enorme, o qual ele se recusava a mostrar a quem pedisse.

Todos olhavam para ele, mas ele havia feito uma promessa a si mesmo: não diria uma só palavra enquanto não chegasse no seu ponto final. Mas antes que ele fosse embora, todos perguntaram para aonde ele iria, e tudo que ele fazia era mostrar um pergaminho com umas letras estranhas, que ninguém podia compreender. "Lá vai o louco, outrora grande guerreiro, Gunther!", dizia o ancião chefe de seu vilarejo, impotente no desejo de fazê-lo ficar.

Gunther entrou então pelas florestas, caminhando como andarilho rumo ao sul, rumo a um local desconhecido para ele. Não, não tão desconhecido. Ele sabia em seu coração para onde iria, só nunca havia ido lá. Com o voto de silêncio, pretendia com isso não ser desviado do caminho por línguas ardilosas e cheias de malícia. Por isto, levava consigo também uma pena, um pequeno vasinho de tinta vermelha extraída de ervas, e um rolo de pele de carneiro, e dedicaria, ao que ousasse interrogá-lo, apenas uma frase escrita. Estranho? Talvez. Mas algo muito intenso queimava no peito de Gunther, e ele está disposto a tudo para chegar aonde quer e precisa estar.






terça-feira, 3 de abril de 2012

O Homem-Lobo



Corro cada kilômetro buscando superação;
Tracei objetivos que não posso deixar para trás.
A vida clama meu sangue sem moderação.
O tempo que perco, não recupero mais.

O lobo que habita em mim é o que me alimenta.
Sua força vital sustenta meu ser diariamente.
Por quê negar o que me sustenta?
Entregue-se ao seu animal interior plenamente!

Não fuja de sua natureza, homem.
Experimente seu lado animal!
Permita-se estar além da existência banal.

Melhor se tornar verdadeiro lobo-homem,
Do que se esconder em pele de ovelha,
E se juntar ao rebanho em volta da ceia.

segunda-feira, 2 de abril de 2012

Memórias Póstumas de uma Barbie Girl

Carta encontrada ao lado do leito de Carolina, antes que ela entrasse em coma.

"A vida não é fácil. Entretanto, quando nós buscamos a nossa completude nas coisas erradas, ela não é apenas difícil, mas insuportável. Essa é a minha história: Carolina, 29 anos. Desde os 17, por influência de amiguinhas de escola, entreguei-me à vaidade e à futilidade típicas das meninas desta época. Adorava ver as fofocas nos jornais, os meninos bonitos da minha sala de aula e das outras (os mais velhos). Isto me levava a vaidades e ao vício de comprar roupas, cosméticos e sapatos sem nenhum auto-controle.

Esqueci-me como era ser humano. Às vezes eu pensava algumas frases prontas do tipo "a sua inveja é do tamanho do meu sucesso", "se há pedras no meu caminho, eu as colherei e com elas farei meu castelo", "contra olho gordo, colírio diet", e isto era o máximo que minha mente obtusa podia alcançar. Como consequência desta patetice, eu não gostava de me misturar com gente que não fosse "chique" que nem eu. Também amava os cantores "gatinhos" do momento, que cantavam coisas fofinhas em letras pateticamente escritas para colher dinheiro de fãs histéricas incautas e fúteis. E como eles enriqueceram! E desapareceram tão rápido quanto enriqueceram...

Se eu ficava triste, eu comia uma barra de chocolate, ou um potinho de sorvete. Por vezes, minhas tristezas e angústias me custavam uma blusinha, um shortinho, uma calça jeans ou um perfume "do momento". A euforia vinha por um instante, e logo sumia. Eu não entendia bem, achava que a felicidade era uma coisa que vai e vem rapidamente, não conseguia enxergar além disso. Eu trabalhava, pois estudei na universidade particular que meu papai pagou para mim com tanta boa vontade e me qualifiquei. Algumas de minhas amigas, tão fúteis quanto eu, conseguiam estudar nas universidades públicas, mas eu, naquele instante, achava que a universidade pública era coisa de pobre metido a inteligente, e quis estudar com gente da minha estirpe. Minhas amigas sabiam conciliar o que para mim era uma tragédia (estudar com a ralé), mas na minha cabeça aquilo não entrava.

Nos finais de semana, eu gostava de sair. Como nem todo lugar tocava as músicas dos meus gatinhos cantores, eu  me contentava com o ritmo do gueto. Sabe como é, não é? "É som de preto, de favelado, mas quando toca, ninguém fica parado", dizia uma daquelas canções (se é que eu posso, agora, chamar aquilo de "canção"). Então eu saía para dançar. Mas, ficar perto daquela gente? Não, preferia ficar nos locais separados para quem quer curtir com conforto, boa comida e boas bebidas.

Minha vida seguia neste ritmo até alguns dias atrás, quando, na faculdade, desmaiei, dada minha pressão baixa (herança de minha mãe). Há três dias estou em observação em meu quarto, que foi adaptado para que eu pudesse estar internada aqui mesmo em minha casa. Os médicos estão fazendo exames para diagnosticar o que tenho, mas por enquanto nada sei. Há duas horas atrás, um homem apareceu na janela de meu quarto, do lado de fora de minha casa, e me disse: "Menininha bonitinha, que parece uma boneca: O que houve? Por que você está tão abatida?". Expliquei-lhe o que havia acontecido. Ele então disse: "Sei. Problemas de saúde podem ser um fardo pesado para se carregar quando não se sabe quem é, e para que se está neste mundo. E você, sabe quem você é, e para que vive?"

Naquele momento, um silêncio profundo tomou conta daquela situação. Pensei em tudo aquilo que eu gostava de fazer, e vi uma futilidade tão grande, que uma lágrima escorreu dos meus olhos. Eu, que pensava que fazia grandes favores para mim mesma, como me cuidar, comprar coisas bonitas, comprar coisas legais, fomentar uma linda imagem diante da sociedade. Esqueci-me de enriquecer a mim mesma, a minha alma. Eu era tão vazia, que bastou que uma pessoa nobre e virtuosa me fizesse uma simples pergunta, para que eu me perdesse no enorme vácuo da minha mente, e do meu espírito. Ele então pediu-me que eu escrevesse uma carta sobre toda minha vida, e esta folha de papel em que você, leitor desconhecido, lê agora, é a missiva prometida. O homem disse que depois voltaria para buscá-la, e que iria, compreendendo-a, me ajudar a ser uma pessoa melhor, assim que eu estiver saudável novamente.

Termino esta carta desejando que eu possa ter mais vida para refazer tudo. Eu precisei que uma pessoa desconhecida me abrisse os olhos para os meus vícios de "barbie girl", e me fizesse atentar para aquilo que realmente tem valor neste mundo: o enobrecimento e a virtude, aquilo que eu não entendia bem há pouco tempo atrás, que eu achava que era baboseira de filósofos e desocupados. Que Deus me ajude!

Carolina Vieira"

domingo, 1 de abril de 2012

Intervalo



A orla é meu habitat.
Um blues em meus ouvidos,
Cair da tarde,
Só não é melhor que gemidos.

Quando na aletoriedade,
Toca a voz dela,
Me rendo. Canto o básico.
E todas minhas dores se vão.

Este é meu intervalo.
Um tempo para descobrir,
Quem sou de verdade.

Tempo para abrir a mente,
Ser eu mesmo, sem fingir,
Sem tentar ser feliz.

Iconóstase (perpétua contemplação)

Olha, filho fiel, cada folha balançada ao vento.

Olha, ó filho fidelíssimo, cada pessoa que diante de ti passa. Veja como andam, uns apressados, outros tão suavemente devagar. Vê, filhinho, como são as coisas ao teu redor, contempla cada uma com carinho e dedicação. Faz como fala teu pai, que te fala com conhecimento de causa.

Escuta cada canção cantada nas ruas, cada voz que se levanta no deserto, cada veículo que ruge como um leão faminto nos engarrafamentos diários. Vê a água sendo cortada pela barca que te carrega, graciosa, pelo mar tranquilo. Guarda na tua mente cada imagem que vês. Se máquinas podem gravar em sua artificial memória milhões de fotos, por qual motivo tu não o poderias, filho meu, se fostes desenhado com tanto capricho, e dotado de uma máquina natural tão mais poderosa que as artificiais?

Guarda no teu peito cada amor que sentistes. Imprime no teu coração as impressões digitais da moças a quem abraçastes, beijastes, amastes, fizestes sorrir, correstes, brincastes... Desenha na tua alma a imagem de cada uma das graciosas donzelas, nutre por elas um eterno e inocente saudosismo...

Cada uma dessas coisas que te peço para guardar, meu amado e querido filho, é um ícone da tua vida. Guarda-as como teu bom pai te pede. Forma a tua iconóstase, e consagra-a. Pois cada ícone é único, tu jamais hás de ter ícones repetidos. Perceba, então, a graciosidade, a unicidade e o valor de cada um dos teus ícones. Apresenta ao Pantocrator¹, quando partires para a tua dormição, a tua iconóstase, dizendo-lhe  com todo fervor: "Kyrie, eleison!"²






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1: O que tudo rege.
2: Senhor, tende piedade de nós.